Uma situação hipotética apresentada na disciplina Fundamentos de Libras on-line Letras/UFMG.
Você recebeu na escola onde trabalha - como professor ou como orientador educacional - os pais ouvintes de uma criança surda de 5 anos de idade. Esses pais não aceitam que seu filho aprenda Libras. Então, você precisará orientá-los quanto à educação de seu filho. Como você explicaria a esses pais a importância da Libras para o desenvolvimento da criança surda?
Segue a minha resposta para os pais (OUVINTES) de um filho surdo. A resposta se baseia em minha experiência com meu irmão surdo pré-linguístico, de leituras do
artigos "Educação Bilíngüe e a importância da Libras para a criança surda" da profa. Giselli Mara; "
Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos", da fonaudióloga Cristina Lacerda e do primeiro capítulo do livro de Oliver Sacks (Vendo Vozes) em que o autor retrata sobre a audição e história da educação dos surdos.
Essa resposta está com um nível de língua portuguesa mais difícil para os surdos pré-linguísticos compreenderem. Se houver algum surdo que queira um texto mais simples ou se tivermos um vídeo para explicar em Libras, eu coloco aqui no blog. É só me falar.
Se algum de vocês que ler este texto quiser contribuir, sugerir ou criticar algo no texto, fiquem à vontade. É só dizer. Eu estou aprendendo e meu objetivo é compartilhar sobre o mundo dos surdos! ;)
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Minha reflexão/resposta:
Diante da situação vivenciada pelo seu filho surdo em nossa escola, gostaria de apresentar algumas razões importantes para que seu filho aprenda Libras.
O seu filho nasceu surdo e desde os primeiros momentos de sua vida, não teve ainda contato com sua língua natural que é a língua de sinais. No caso do Brasil, a língua de sinais se chama Libras (Língua Brasileira de Sinais). Da mesma forma, por não ouvir, ele também não teve e ainda não tem contato com a língua portuguesa. Diferente de uma criança ouvinte (que ouve) ele não pode aprender o português em seu dia-a-dia com seus familiares, colegas e outras pessoas. Desta forma, seu filho esteve até hoje, sem acesso a uma lingua formal para se comunicar, expressar seus sentimentos, interagir com o mundo. Essa capacidade de interagir e se comunicar com o mundo caracteriza a linguagem que, por sua vez, utiliza a língua de sinais como instrumento.
A aprendizagem da língua portuguesa para uma criança surda não proporciona o desenvolvimento de suas funções mentais de forma adequada pois sua língua natural é a língua de sinais. Os surdos tem uma percepção visual e não auditiva. Com isso, é muito difícil para o surdo aprender a língua portuguesa sem antes ter aprendido sua língua natural. Geralmente, demora uns 10 anos.
Vários estudos já foram realizados com crianças surdas que não tiveram contato com a língua de sinais nos primeiros anos de vida. Essas crianças tiveram um comprometimento no desenvolvimento cognitivo. Eu tenho um irmão surdo que não teve oportunidade de aprender Libras em seus primeiros anos de vida por questões sociais e educacionais. Com isso, hoje, já adulto, se percebe uma dificuldade na leitura e escrita da língua portuguesa. Ele é capaz de ler, escrever em língua portuguesa como um adulto ouvinte. Mas como tem uma defasagem no vocabulário em comparação com outros surdos que tiveram acesso à língua de sinais nos primeiros anos de vida (até uns 7 anos, em média). Por outro lado, conheço surdos que nasceram com surdez profunda, aprenderam Libras na adolescência e se comunicam perfeitamente em língua portuguesa (tanto para leitura quanto escrita).
A língua de sinais tem então além da função social e comunicativa, também uma função cognitiva pois possibilita o desenvolvimento do pensamento (abstração, generalização etc). A linguagem exerce uma função organizadora e planejadora. Por outro lado, estudos sobre crianças surdas, filhas de surdos, demonstram que estas apresentam desenvolvimento linguístico, cognitivo e acadêmico comparáveis ao de crianças ouvintes, filhas de pais ouvintes, o que apontam para a importância dos surdos serem expostos a língua de sinais o mais cedo possível.
Os problemas sociais e de desenvolvimento para uma criança surda que não aprende língua de sinais, já comprovados são:
- O conteúdo de educação dos surdos é pobre em comparação com as ouvintes pois gasta-se muito tempo ensinando a criança surda a falar (5 a 8 anos de ensino individual intensivo). Com isso, sobra pouco tempo para transmitir informações, cultura, habilidades complexas ou qualquer outra informação;
- Como ela demora a aprender a língua portuguesa e não aprende Libras, ela fica sem oportunidade de usar a linguagem, um dos principais recursos para solução de tarefas
- A criança não saberá como recorrer ao planejamento para solução de problemas, pois sem uma língua ela perde a capacidade de proposionar. Uma criança sem uma língua não é capaz de proposicionar interna ou externamente. O proposicionar está relacionado a se expressar, de dizer às outras pessoas o que pensa e para dizer a si mesmo o que pensa.
- Com esses problemas, a criança não adquire independência, não controla seu próprio comportamento e ambiente e não se socializa adequamente.
O neurologista Oliver Sacks destaca que um aspecto essencial na educação de surdos: “as pessoas profundamente surdas não mostram em absoluto nenhuma inclinação inata para falar. Falar é uma habilidade que tem de ser ensinada a elas, e constitui um trabalho de anos. Por outro lado, elas demonstram uma inclinação imediata e acentuada para a língua de sinais que, sendo os que a aprendem (como primeira língua) e possui a beleza e excelência instrínsecas, às vezes superiores às da fala’”.
De: Letícia Capelão
leticiacapelaoprof@gmail.com
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